O livro “Os Arcanos Profundos do Criptojudaísmo: O Papel da Cabala na resistência cultural dos sefarditas à perseguição inquisitorial” conta uma história por muito tempo olvidada. Apesar de existir uma tradição de estudos a respeito do criptojudaísmo nos Estados Unidos, Portugal, Espanha, França e América Latina, por meio de pesquisa em fontes inéditas e também pela reinterpretação de fatos tradicionalmente já estudados, foi possível revelar a existência de uma dimensão mais profunda, propositalmente escondida e até agora insuspeita para a maioria dos estudiosos, dentro do chamado criptojudaísmo.

A “história subterrânea” dos chamados “cristãos-novos” revelou a existência de uma camada inusitada: o cabalismo praticado por meio de um rico sistema de símbolos e costumes esotéricos, como a forma mais acabada da resistência cultural ao etnocídio que o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição intentou executar contra eles durante os tempos modernos nos países ibéricos e suas possessões coloniais.

O livro inicia demonstrando que a Cabala, tanto teórica quanto prática, era uma tradição ancestral entre os sefarditas quando ocorreu a expulsão da Península Ibérica ao final do século XV (a partir daí chamados de cristãos-novos).

Depois apresenta o processo histórico que levou ao fortalecimento da influência da Cabala sobre a cultura dos cristãos-novos que insistiram em manter sua identidade cultural, os judaizantes.

Esse povo, que vivenciou nos tempos modernos esse doloroso processo de diáspora pelas bacias do Mediterrâneo e Atlântico, deu origem a importantes redes comerciais e de solidariedade por meio das quais eles compartilhavam não somente interesses materiais, mas, também, uma cultura comum.

Seguindo o costume dos intelectuais, a partir do humanismo renascentista, de formar a “república das letras”, esses cristãos-novos judaizantes engendraram “círculos literários”, como o de Ferrara, e “circuitos culturais” de dimensões variadas, como o encabeçado por Veneza, ambos na Itália.

 Em função das obras de literatura produzidas pelos cristãos-novos na diáspora, foi possível conhecer os principais anseios e motivações, as opiniões, argumentos básicos, influências intelectuais e vida espiritual que os motivaram ao longo de seu percurso histórico.

Assim, obras como Consolação às Tribulações de Israel, de Samuel Usque (1553), História de Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro (1554), impressas em Ferrara, e A Prosopopéia, de Bento Teixeira (1601) foram examinadas com o intuito de perscrutar a utensilagem mental e visão de mundo dos cristãos-novos judaizantes durante os tempos modernos. O que se descobriu foi uma mensagem criptografada deixada para a posteridade por esses perseguidos durante os tempos modernos.

O código capaz de decifrar essa mensagem também foi revelado no livro. Na mesma época em que o círculo literário de Ferrara se constituía, um significativo grupo de cabalistas, oriundo de Portugal e Espanha, dirigiu-se para a palestina e transformou um pequeno vilarejo, chamado de Safed, no principal centro de Estudos cabalistas dos tempos modernos.

Entre 1530 e 1590, em Safed, ocorreu uma revolução religiosa cujas consequências se difundiram por todo o mundo judaico com reverberações até o início da época contemporânea: O pensamento de Isaac Luria, principal cabalista de Safed, deu origem a uma nova perspectiva para a Cabala.

O fato relevante é que a Cabala luriânica, através do circuito cultural liderado por Veneza, difundiu-se pelas comunidades de judeus retornados, antigos cristãos-novos, e de criptojudeus, em toda a extensão de sua Diáspora.
A Cabala luriânica influenciou elementos centrais da Cosmovisão dos criptojudeus no exílio: messianismo, a exemplo do caso de Shabatai Tsev (1665-1666), antinomismo, pensamento mágico-supersticioso, formação de comunidades esotéricas, ecumenicidade, postura liberal-democrática, valorização da dimensão feminina.

O livro analisa o caso de alguns cristãos-novos praticantes da Cabala e demonstra, através desses exemplos, como o cotidiano das comunidades de criptojudeus, durante os tempos modernos, transcorria numa dialética entre a ortodoxia da lei judaica e o antinomismo da Cabala.

Porém, em que pese a perseguição do Tribunal do Santo Ofício, através dessas “comunidades de saber esotérico”, o cabalismo por eles praticado passou despercebido. Isso porque essa forma de vivência, profundamente carregada de símbolos, confundiu em muitos momentos os sensores da Inquisição católica, não iniciados no hermetismo da Cabala, embora esta não tenha sido a sorte de alguns deles.

Sabe-se que o elemento místico tem sua origem e alcança camadas de significação mais profundas em tempos de crise e tribulação. Assim, a religiosidade das comunidades de cristãos-novos da diáspora era vista pelo próprio status quo do judaísmo dominante como heterodoxa, principalmente devido à influência predominante da Cabala.

Para demonstrar o cabalismo dos criptojudeus foram estudados alguns processos do Tribunal do Santo Ofício referentes a cristãos-novos judaizantes acusados de feitiçaria, potenciais praticantes da Cabala. A partir da análise desses processos importantes elementos da Cabala foram revelados como constituintes da cultura dos cristãos-novos.

Por exemplo, o livro traz a interpretação histórica, inspirada no paradigma indiciário de Carlo Ginzburg, do caso de um acusado perante o Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, por nome João Baptista Laroca, no início do século XVIII, de ser judeu e possuidor de um livro de magia cerimonial.

Esse documento estudado revela o conteúdo de um célebre livro ocultista, rituais para enriquecimento através da invocação de demônios e lança dúvidas sobre a identidade desse personagem que, em meio a um processo confuso pode ter escapado dos rigores da Inquisição mesmo sendo um criptojudeu e alquimista cabalista, ou seja, adepto da Cabala prática.

Além disso, o livro demonstra como a Cabala luriânica, através de sua influência sobre cabalistas cristãos, contribuiu com ideias-força para o movimento iluminista do século XVIII. Nesse processo, chama a atenção para a formação da sociedade iniciática dos mações, entre os séculos XVII e XVIII, e como essa recebeu um significativo contributo de ideias cabalistas e tornou-se importante ambiente de acolhida para os cristãos-novos cabalistas.

Por último, a obra sugere os caminhos que a pesquisa histórica deve seguir para reconstituir a trilha histórica capaz de ligar essas “comunidades esotéricas” de cristãos-novos judaizantes ao movimento de retorno de seus descendentes ao judaísmo durante o século XX, tanto em Portugal como no Brasil.